Indisponível
Levantei-me cedo. Tomei um duche. Não fiz a barba, apeteceu-me que se notasse o meu desprezo pelos padrões. Não ouvi os noticiários matinais, e fiz por evitar as bancas de jornais. Hoje o destaque sou eu, o auto-sufuciente, o indispensável.
Cheguei tarde. Sentia os olhos fundos, mais sonolentos que eu, e um vazio interior, talvez explicável pela falta do pequeno-almoço. A eficiência macabra que revelou, mostrou-me claramente que também ele um dia decidira deixar a humanidade em casa. Mexia-se bem, com um controlo soberbo de tudo o que o rodeava, sobretudo daquilo que lhe dizia respeito. Dizia o essencial. Não "apenas" o essencial, mas o essencial. O tempo podia medir-se pelo ritmo seguro dos gestos e dos sons que produzia. Era um ser impressionante, um ex-humano, apesar de tudo, mas quase perfeito. Senti-me grande, elevado pelo exemplo daquela criatura ideal, infinitamente acima dos ineficazes, dos ilógicos, da turba feliz e barbeada que lamentavelmente nunca atingiria aquele nível de sintonia com o líder.
Quando acabou, saí demonstrando a firmeza e indiferença que não precisara de aprender com ele. Olhar em frente, passada firme, auto-suficiente, indispensável, mas indisponível. Como tudo o que é indispensável. Senti um ruído no estômago. Era o vazio que mostrava um natural desconforto perante a poluição exterior. Não podia ser fome. De facto, pensei, jamais voltaria a ter fome. Foi quando a vi.
Insegura, ondulante. Constipada. Uma picada quase imperceptível na nuca, um ligeiro arrepio, e tive de correr para casa. Buscar o que lá deixei.