Países temporários
Desde puto que gosto de sentir o espaço recuar à minha volta. Recordo com prazer o fascínio que me inspiravam as orgulhosas multidões de pinheiros passando por mim em sentido contrário, correndo firmes e verticais, ultrapassando casas e montanhas, num pacífico espectáculo marcial.
Tinha dez anos quando comecei a viajar regularmente em transportes públicos. Ainda me lembro bem das velhas carreiras da Rodoviária Nacional, cujos trovejantes motores e rígidas suspensões rapidamente monopolizavam a atenção do utente, em desfavor das vistosas riscas laranja da carroçaria. Muitos anos depois, continuo a apreciar a sensação de habitar, ainda que por breves momentos, esse pequeno monstro instável, sujeito aos caprichos atmosféricos, às ratoeiras da estrada e à perícia do motorista: o autocarro de passageiros. Ali vive-se, enquanto se viaja. É como um pequeno país a deslocar-se. E tudo pode acontecer! Mais tarde hei-de contar-te como me aconteceu apaixonar-me a bordo dum expresso...
Quando acabei o liceu, apaixonei-me também pela segurança e disciplina do mais potente e igualitário veículo terrestre de transportes: o comboio. De facto, salvo algumas batotas, nos caminhos de ferro não há ultrapassagens! Pois é, há classes separadas nos comboios mas, sinceramente, isso não me preocupa muito: ao luxo e à etiqueta prefiro o convívio com as pessoas e a liberdade de pôr os pés no banco da frente. Ups! Vem aí o revisor! Sou um privilegiado por viajar em segunda classe...
Portugal tem talvez a mais miserável rede de transportes públicos da Europa ocidental, com serviços de baixa qualidade e pouco pontuais, pagos a preços que os construtores de automóveis agradecem. Mas eu gosto, mesmo assim, de andar de comboio. Quase sempre disfruto da viagem sem me preocupar seriamente com mais nada. Esqueço de onde venho e para onde vou. Este feitiço começa naquele lugar impressionante, na magnífica estrutura metálica enxameada de pessoas e bagagem, o limbo onde se cruzam, convergem ou começam os trilhos que levam à esperança e à saudade. O semi-lugar onde tudo começa e acaba: a estação de caminhos de ferro. E o encantamento continua, durante a viagem. Sigo embalado pelo ritmo nervoso das carruagens (que já foi muito mais nervoso!), o deslizar infernal das rodas nos carris, aço batendo no aço, enquanto pessoas, carros, casas, árvores, montanhas e cidades vão ficando para trás. Só este país temporário avança, rasgando a atmosfera. Repara que tudo aqui é mais autêntico nas pessoas, a novidade faz-nos assim. E cada viagem é uma novidade.
E por mais herméticos e deprimentes que os tornem, nos países temporários sobre rodas hei-de continuar a alimentar a ilusão de que os pinheiros andam mesmo. Pelo menos, enquanto houver pinheiros.